Aqui eu, simplesmente, falo de tudo, posto de tudo, me sinto livre pra me expressar de acordo com meu dia porque, afinal, eu sou Meio Ligado.
05 janeiro, 2015
A Febre Hemorrágica do Ebola
Em 1976, no antigo Zaire, hoje República Democrática do Congo (RDC), uma estranha e desconhecida doença caracterizada por febre alta, hemorragias na pele e nos órgãos internos, começou a acometer os moradores de uma pequena cidade ribeirinha chamada Yambuku. A mortalidade chegou a quase 90% e chamou a atenção das autoridades. Após auxílio internacional, um grupo de pesquisadores descobriu que o agente causador era um vírus filamentoso da mesma família do Marburg descrito na Alemanha, quase uma década antes. O vírus foi batizado como Ebolavirus (pronuncia-se ébola) dado que a doença já era conhecida como Febre Hemorrágica do Ebola, segundo o rio que banhava a cidade, tributário do Mongala que, por sua vez, desemboca no grande rio do Congo.
No mesmo ano, nas cidades de Maridi e Nzara, Sudão do Sul, a mais de 1000 km em linha reta ao norte de Yambuku, uma epidemia com características muito semelhantes também eclodiu. Pesquisadores encontraram uma variante do mesmo vírus do Ebola nos pacientes acometidos. Outras epidemias surgiram no final da década de 70, não só na África, o que, ao fim e ao cabo, permitiu a identificação de 5 sorotipos da família Ebola: 1. Bundibugyo ebolavirus (BDBV); 2. Zaire ebolavirus (EBOV); 3. Reston ebolavirus (RESTV); 4. Sudan ebolavirus (SUDV); 5. Taï Forest ebolavirus (TAFV). O RESTV foi encontrado em macacos importados de Mindanao, nas Filipinas, para Reston, Virginia, nos Estados Unidos e não é considerado causador de doença humana.
O comportamento epidemiológico estranho do Ebola não parou por aí. Após ter aparecido na África em 1976 – 1979, ele simplesmente sumiu das estatísticas até 1994. Acredita-se que permaneceu oculto, circulando em seus reservatórios naturais. Um reservatório natural de um patógeno é um hospedeiro, animal ou inseto, que por não apresentar as características da doença, “convive” com o agente de forma pacífica. No Brasil, tatus são reservatórios para doença de Chagas e morcegos podem abrigar o vírus da raiva. O problema é que, no caso do Ebolavirus, esse reservatório, até hoje pelo menos, não foi confirmado, suspeitando-se de roedores e morcegos já que seu primo, o Marburg, tem como reservatório um morcego de caverna (o Rousettus aegyptiacus).
A Febre Hemorrágica do Ebola é o protótipo de uma zoonose. Uma zoonose é uma doença transmitida por animais (e.g. Raiva), e também não foram encontrados vetores para a doença. Um vetor é um bicho (pode ser animal ou inseto) que transmite determinada doença (e.g. o mosquito da Dengue, Aedes aegypti). O comportamento esquivo das epidemias poderia ser explicado por situações que alterariam o ecossistema dos reservatórios proporcionando altos índices de infecção nos humanos de tempos em tempos.
Quadro Clínico
O período de incubação da doença é de 4 a 10 dias (variando de 2 a 21). É, logo de início, uma doença sistêmica (como são por exemplo, os casos de infecção generalizada por bactérias – sepse -, as vasculites de causas imunológicas, a pancreatite aguda necro-hemorrágica, grandes queimados e politraumatismos extensos), o que dificulta seu tratamento e aumenta sua gravidade. O paciente sente-se extremamente indisposto, com dor abdominal, náuseas e vômitos (que podem conter sangue), diarreia (com ou sem sangue), falta de ar, tosse, pressão baixa, dor de cabeça, confusão mental e coma. Podem ocorrer hemorragias cutâneas e viscerais e a pele costuma descamar para cicatrizar ad integrum nos sobreviventes. Um quadro chamado de coagulopatia intravascular pode ocorrer e é, em geral, fatal. Virtualmente, todos os vasos sanguíneos do organismo podem sangrar e o quadro é realmente dramático. Tal problema não é, infelizmente, incomum em casos graves causados por outras doenças e não é uma exclusividade do Ebola. A Dengue, por exemplo, é a febre hemorrágica mais comum do planeta.
Mortalidade
A virulência do Ebola parece depender do sorotipo causador. A mais letal parece ser a EBOV seguida pela SUDV, com 60–90% e 40-60% de case-fatality (porcentagem de pessoas que contraíram a doença e que vieram a falecer dela, direta ou indiretamente), respectivamente, o que é muito. Devemos lembrar, entretanto, que tais epidemias ocorreram em locais onde os cuidados médicos estavam longe de ser ideais o que pode falsear as estatísticas. De qualquer forma, é uma doença muito grave.
Modo de Infecção
O Ebolavirus parece penetrar no organismo humano através de superfícies mucosas, lesões cutâneas, ferimentos ou pelo sangue. Muitas das infecções causadas em humanos, em especial o grande contingente de agentes da saúde, parecem ter ocorrido pelo contato direto com pacientes infectados. Partículas de RNA vital foram encontradas no esperma e secreções vaginais de pacientes, bem como em outros fluidos como secreções nasais. Ferimentos acidentais por agulhas e material contaminado são importantes rotas de infecção. As epidemias africanas da década de 70 foram atribuídas ao consumo de morcegos e macacos. Não é confirmada, até o momento, a transmissão por aerossóis.
Precauções e Tratamento
O isolamento dos pacientes é uma eficiente medida de proteção já que o tratamento específico ainda é objeto de pesquisas. Medidas de suporte precoces como hidratação e cuidados intensivos são muito importantes e fazem grande diferença na mortalidade. Entretanto, há que se chamar a atenção para o caso dos dois agentes sanitários americanos recentemente submetidos a uma terapia experimental para o tratamento da doença contraída em campo. Kent Brantly e Nancy Writebol contraíram a Febre Hemorrágica do Ebola na Libéria trabalhando em uma organização cristã de auxílio às vítimas da doença. Apesar do protesto absurdo de alguns sobre a repatriação de americanos infectados, o fato é que, baseados em um relato de caso no qual o soro de pacientes sobreviventes conseguira reverter a doença, um consórcio de pesquisadores conseguiu desenvolver uma solução com anticorpos monoclonais contra determinados antígenos imunogênicos do vírus e curar os dois missionários, fato amplamente divulgado na mídia.
Futuro
Não é impossível que a Febre Hemorrágica do Ebola desembarque no Brasil. Contam a nosso favor, seu modo peculiar de transmissão, seus possíveis reservatórios (ausentes aqui?), nossa experiência em tratar a dengue hemorrágica e nosso sistema de saúde, que se não é a segunda maravilha do mundo, é bastante superior e estruturado comparado ao da maioria dos países africanos. Contra nós, pesa nossa eterna ineficiência sanitária e as grandes conglomerações nas cidades.
De vez em quando, uma epidemia qualquer com “potencial” de extermínio da humanidade “aporta” neste blog. Gosto de citar como exemplo minha pior experiência com tais epidemias que foi com a Síndrome de Weil, a forma hemorrágica da leptospirose humana, na epidemia ocorrida em São Paulo no final dos anos 90. Naquela época, de enchentes, diga-se de passagem, a doença transmitida pela convivência promíscua com roedores, atingiu em cheio a parte mais pobre da população. Ver homens, mulheres e crianças em macas sangrando por quase todos os orifícios foi das minhas piores vivências que tive como médico. Passou. Estamos aqui. No caso do Ebola, já temos até o caminho a seguir para conseguir a cura. Resta saber se as instituições envolvidas na descoberta do “soro mágico” contra a doença possibilitem sua oferta para quem mais necessita. Isso sim, a possibilidade de me decepcionar uma vez mais com a espécie humana, me dá um medo desgraçado.
Bibliografia
ResearchBlogging.orgFeldmann, H., & Geisbert, T. (2011). Ebola haemorrhagic fever The Lancet, 377 (9768), 849-862 DOI: 10.1016/S0140-6736(10)60667-8
ResearchBlogging.orgPeters, C., & LeDuc, J. (1999). An Introduction to Ebola: The Virus and the Disease The Journal of Infectious Diseases, 179 (s1) DOI: 10.1086/514322
ResearchBlogging.orgMupapa, K., Massamba, M., Kibadi, K., Kuvula, K., Bwaka, A., Kipasa, M., Colebunders, R., Muyembe‐Tamfum, J., & , . (1999). Treatment of Ebola Hemorrhagic Fever with Blood Transfusions from Convalescent Patients The Journal of Infectious Diseases, 179 (s1) DOI: 10.1086/514298
Fonte: science
Nenhum comentário:
Postar um comentário